segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Savant

A SÍNDROME DE SAVANT

Copyright © 1978-1995. Sylvio Ourique Fragoso
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As coisas da natureza obedecem a ciclos definidos. Do esplendor do plenilúnio vemos a claridade lunar extinguir-se até às sombras da lua nova, para depois o brilho selênico vir aos poucos revestindo-se de prata e refulgir de novo na plenitude da lua cheia.
As árvores perdem seu verde, apresentando-se nuas e melancólicas no inverno, mas depois de novo reverdecem para outro festival de vida em nova primavera.
E se tudo é assim, por que seria diferente com o homem?
Os fatos que evidenciam a reencarnação pululam aos nossos olhos, só não os vendo quem não os queira ver. Os arquivos dos pesquisadores psíquicos, há pelo menos um século, vêm se abarrotando de casos exaustivamente pesquisados, e no próprio império do materialismo russo os estudos sobre o que se convencionou chamar de "memória extracerebral" vão acumulando evidências sobre a imortalidade e o renascimento, mas ante as desigualdades da vida muitos são os que ainda preferem crer em inexplicáveis "desígnios divinos", que seriam a mais completa negação da justiça, ou em mirabolantes teorias da ótica materialista, muito mais fantásticas do que a verdade singela e patente da palingênese. Talvez por isto surjam de vez em quando fenômenos ostensivos, como um brado de alerta a despertar as consciências hibernantes para a realidade maior de nossas vidas.
O programa "Fantástico" de 08/01/84 mostrou, sem que esta fosse a sua intenção, alguns casos evidentes de reencarnação camuflados naquilo que os doutos estão chamando de "Síndrome de Savant". Tal síndrome consiste na grande aptidão para certas atividades e que é encontrada em pessoas portadoras de deficiência mental, aptidão essa que se apresenta independentemente de qualquer aprendizagem prévia. As autoridades médicas entrevistadas, embora tivessem a honestidade de reconhecer que nada sabiam sobre a natureza desse fenômeno, mostraram-se inclinadas a considerá-lo como um desenvolvimento excepcional da memória. Só que essas autoridades se esqueceram de explicar aos telespectadores como é possível alguém ter memória daquilo que nunca aprendeu e que, no caso, nem poderia aprender, considerada a grave deficiência mental dos portadores daquela síndrome.
O que a televisão mostrou foram alguns cidadãos norte-americanos, todos com grande retardo mental, e que não obstante possuem capacidade para a execução de certos atos com tal perfeição que se aproximam da genialidade. Vejamos dois desses casos.
Um deles é um escultor. Trata-se de um homem com a inteligência tão comprometida que não consegue articular uma frase que tenha mais que três palavras. E no entanto, desde muito criança revelou espontaneamente uma assombrosa habilidade para esculpir animais. Qualquer animal, embora sua preferência recaia sobre elefantes e cavalos. Mas não se trata de uma escultura estilizada ou grotesca. Os animais que molda são absolutamente perfeitos, e ele os faz em questão de minutos. E o notável é que quando o repórter lhe perguntou (perguntou pausadamente, para que aquela inteligência em eclipse pudesse entender a pergunta) como ele sabia esculpir tão bem, o pobre rapaz, dentro de sua limitação, deu a mais sintética, a mais assombrosa e a mais verdadeira resposta de quantas poderia dar. Disse ele simplesmente:
- I remember ! (eu me lembro).
O outro caso é o do pianista. Trata-se de um homem com acentuado retardo mental, cego de nascença e com tal descoordenação motora que mal consegue segurar um lápis que lhe dêem. Essa pessoa foi adotada, quando criancinha, por uma senhora que a encontrara em um orfanato. Ocorre que sua mãe adotiva tinha um piano em casa e uma noite, quando a criança estava já com dois anos de idade, a mulher e o marido foram acordados por alguém que executava ao piano a Sinfonia nº 1 de Tchaikovsky. Correndo para ver quem assim tocava, qual não foi o espanto do casal ao se deparar com o menino, cego e retardado mental, que junto ao piano executava aquela difícil peça.
E até hoje, já homem feito, ele toca com desembaraço qualquer música, clássica ou popular, bastando para tanto, ouvi-la uma vez. O repórter do "Fantástico" fez ainda um teste com o homem: ligou um gravador deixando-o ouvir duas músicas que lhe eram desconhecidas, sendo uma delas uma peça difícil de Vila Lobos e a outra o choro "Carinhoso". Mal as ouvira, o rapaz as reproduziu ao piano.
Qualquer um sabe que para se tocar piano sem olhar o teclado é preciso muito treino, até que se crie o condicionamento necessário para que os dedos sejam levados sem auxílio da vista para as teclas certas. Como se explica que uma criança de dois anos de idade, cega de nascença e deficiente mental pudesse, na primeira vez em que se aproximou de um piano, dirigir seus dedos corretamente e executar uma obra de Tchaikovsky? Não se trata de ficar tecleando até achar as notas. Suas mãos, que ainda hoje mal seguram um lápis, foram impulsionadas diretamente para as teclas certas, do começo ao fim da música.
Os psiquiatras consultados falam em "memória". Mas se a criança era cega, sem coordenação motora e deficiente mental, se nunca havia estudado piano, de onde lhe veio essa memória aos dois anos de idade? Afinal, memória de quê?
Mas os psiquiatras não estão de todo errados. Trata-se, por certo, de memória. Mas em vão se há de procurá-la naquele cérebro destrambelhado.
Não faltará também quem fale no desenvolvimento de certas áreas cerebrais, que estariam atuando como que numa compensação pelas áreas comprometidas do outro hemisfério cerebral. Mas uma explicação científica ou engloba os casos na totalidade e a totalidade dos casos, ou deixa de ser científica. Por que esse desenvolvimento de áreas cerebrais só se expressa quando se trata de tocar piano (onde as duas mãos são usadas) e desaparece quando se trata de operações muito mais simples, como traçar um risco com um lápis? E depois, que área cerebral pode ser capaz de conduzir as mãos de um cego sem nenhum ensaio anterior, sobre o teclado de um piano, de modo a não errar uma nota? Que se fale em memória auditiva, está bem. Mas os dedos só poderiam ferir as teclas certas, desde a primeira tentativa, em decorrência de um condicionamento, fruto de um aprendizado prévio. Além do mais, é um tanto temerário pretender que o cérebro justifique todos os fenômenos da vida. Charles Richet, prêmio Nobel de fisiologia, já observara que o paralelismo absoluto, constante, irresistível, entre o pensamento e a função do cérebro não é de evidência indiscutível.
É claro que o cérebro é o veículo de expressão da alma, de tal sorte que se ele está lesado a manifestação da inteligência fica prejudicada. Mas o fato é que a alma, por vezes, encontra forma de vencer a barreira de um cérebro anômalo. Bozzano menciona um oficial de Antuérpia que viveu toda uma vida normal, apenas com persistente dor de cabeça. Depois de morto, a autópsia revelou que um abscesso lhe reduzira o cérebro a uma papa de pus. Segundo Benecke, o professor Surya faleceu em plena lucidez. No entanto a autópsia demonstrou que seu cérebro há muito estava completamente decomposto. O Dr. Edmond Perrier ao autopsiar um homem que morrera com as funções psíquicas íntegras notou que seu cérebro se apresentava como uma "delgada casca de onde o pus espirrava". Schleich menciona vinte pessoas cujos cérebros estavam seriamente lesados e que não apresentavam alteração psíquica nenhuma. Bem recentemente os jornais noticiaram o caso de um universitário da Inglaterra, dono de elevada inteligência, cujo córtex cerebral não tem mais que um milímetro de espessura, sendo o peso de seu cérebro devido apenas ao líquor de que está cheio. O líquor, como se sabe, é aquele fluido aquoso também chamado líqüido cefalorraquidiano, e que entre outras coisas serve para proteger o sistema nervoso central, agindo como um amortecedor contra contusões. Pois bem. Para a ciência materialista este indivíduo deveria estar morto, ou pelo menos deveria ser um retardado mental profundo. E é um universitário de inteligência acima da média.
Tornando ao nosso pianista, restam-nos quatro hipóteses para lhe explicar o caso, já que a teoria do desenvolvimento de certas áreas cerebrais mostra-se inadequada. São elas:
1) É tudo fraude. O rapaz não toca desde os dois anos de idade. Estudou anos a fio e não tem retardo mental nenhum.
2) Aquela criança, cega e retardada, acertou as notas da sinfonia de Tchaikovsky por mero acaso e com o passar do tempo foi memorizando a posição das notas musicais no teclado.
3) As suas mãos foram e são conduzidas corretamente por influência de uma outra inteligência.
4) As suas mãos foram, desde muito cedo, conduzidas corretamente em decorrência de um condicionamento, fruto de anos de estudo e de prática.
A primeira hipótese iria levar-nos a um número infindável de mentirosos. A começar do rapaz, que se fingiria de retardado o tempo todo, até chegarmos aos psiquiatras entrevistados, passando pelo pessoal do orfanato, que compromete a sua instituição omitindo-se diante da fraude, os pais do implicado, seus vizinhos que não denunciaram a burla, o professor de piano que se esconde e toda a equipe do "Fantástico". Considerando que o rapaz em sua cidade é uma celebridade, pois freqüentemente dá concertos com fins benemerentes, há ainda toda uma população de mamparreiros. Cremos que esta hipótese pode ser descartada sem maiores considerações.
A segunda hipótese, posta em termos de probabilidade estatística, leva-nos ao absurdo. Seria como se alguém tendo recortado várias centenas de letras do alfabeto as jogasse todas do alto de uma torre e então as letras, balançando ao sabor do vento, tocassem o chão ordenadamente, recompondo o texto do Navio Negreiro, de Castro Alves. Também esta hipótese podemos abandonar.
Pela terceira conjectura teríamos a influência mediúnica: o rapaz nada mais seria que um médium. Esta hipótese poderia ser viável. Há na Inglaterra, por exemplo, a médium Rosemary Brown que quando em transe executa ao piano obras inéditas dos grandes mestres da música e há no Brasil o Luiz Gasparetto, que mediunizado pinta quadros dos gênios da pintura. Mas a Rosemary fora do transe é uma pianista medíocre e o Gasparetto, consciente, não sabe o que fazer com suas tintas. Nos casos que estamos discutindo, não. Tanto o escultor como o pianista têm o domínio de suas artes. A habilidade neles é permanente, não dependendo de nenhum tipo de transe para se manifestar.
Resta a quarta hipótese. A criança conseguiu tocar com desenvoltura porque passara por um processo de aprendizagem que lhe criara as respostas condicionadas requeridas para tal atividade. Entretanto, tendo apenas dois anos de idade, sendo cega e deficiente mental, não tivera nem tempo nem condições de realizar tal aprendizado nesta vida, devendo pois, tê-lo feito em outra. E isso lhe foi tão marcante, que o condicionamento adquirido pôde vencer a barreira do túmulo e do útero, vindo a se manifestar em nova existência, não obstante as deficiências do atual corpo físico. Afinal, a sede da inteligência é a alma, e o processo de aprendizagem deixa suas matrizes impressas no perispírito.
Por essas e por outras é que ficamos a pensar que se o repórter, ao se dirigir ao pianista que entrevistava, perguntasse como podia ele desde os dois anos tocar piano sendo cego e deficiente mental, a resposta que o rapaz poderia dar, se um lampejo de inspiração lhe atingisse a alma, seria aquela mesma do escultor, que numa admirável síntese revelou uma verdade que tantos ainda teimam em negar:
- I remember !
E essa resposta, em sua singeleza, far-nos-ia aflorar à mente o texto de Mateus:
Graças te dou a ti, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos.

fevereiro/1984

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